30.5.09

down came the rain


Chovia torrencialmente. De vez em quando as ruas iluminavam-se e, poucos segundos depois, o estrondo do trovão ecoava pela cidade. A Joana saiu do trabalho com a certeza de que a roupa seca que agora vestia não iria continuar assim por muito tempo. Correu para o autocarro, sentou-se no lugar habitual e deixou-se levar pelas músicas que trazia na mala. Antes de sair, respirou fundo e fechou o casaco. ‘Quem me mandou sair de casa a correr? Tinha que me esquecer de alguma coisa…’. Desceu do autocarro e correu. Tentava evitar as poças mais fundas mas essa tarefa era quase impossível quando as ruas se tinham transformado em autênticos rios. Quando estava a chegar à porta do seu prédio, mesmo antes de começar a subir os degraus, um carro resolveu presenteá-la com um banho de água enlameada sem, no entanto, ter pretensões de máscara de beleza. Subiu os degraus dois a dois e começou a procurar as chaves dentro da mala. Encontrou tudo, excepto o que queria. Estava prestes a despejar o conteúdo da mala no chão quando ouve a porta a abrir.
Com o cabelo colado à cara, a roupa a pingar e as mãos ocupadas pela mala e a pasta dos documentos, atirou um ‘obrigada’ ofegante, sem sequer olhar para quem lhe tinha aberto a porta. Como resposta ouviu ‘boa tarde Joana’, o que a fez parar à porta do elevador, tirar o cabelo da cara e voltar-se, mas já só foi a tempo de ver um contorno masculino a abrir o chapéu de chuva, enquanto a porta se fechava atrás de si.
Mal abriu a porta de casa, só lhe apetecia atirar-se para o chão. No entanto, foi tirando a roupa à medida que se aproximava na casa de banho, deixou a rosie thomas invadir-lhe a casa enquanto enchia a banheira com água bem quente e óleos com cheiro a flores. Queria esquecer aquele dia, queria ser capaz de não pensar em nada, queria apenas acompanhar, mesmo que mentalmente, a música que ouvia. No entanto, e para grande surpresa sua, apenas uma frase não lhe saía da cabeça: ‘boa tarde Joana’. Não percebia porquê, mas essa frase vulgar fora dita de uma forma diferente. A voz era suave mas forte, meiga mas decidida e, se o seu bom ouvido não a enganava, também tinha tido direito a um sorriso. Mas no meio de tudo isto, a Joana não sabia a quem pertencia a voz. Morava naquele prédio há apenas seis meses e não conhecia os vizinhos todos, até porque em doze andares há muita gente.
Saiu do banho, enrolou-se no roupão e caiu na cama. Apenas teve tempo para se tapar com uma manta e adormeceu. Acordou na manhã seguinte sobressaltada com o despertador. Sentia que não tinha dormido muito mas, no entanto, não se sentia cansada. Levantou-se, olhou pela janela e pensou que o dia não poderia ser mais bonito. O céu muito azul, sem qualquer vestígio das pesadas nuvens da noite anterior. Depois de apanhar as peças de roupa ainda molhadas que tinha deixado no chão e preparar-se para mais um dia de trabalho, pegou nas chaves e abriu a porta. Assim que o fez, deparou-se com um algo que não esperava. No tapete estava um chapéu-de-chuva azul, da cor do céu que ela tinha visto da janela alguns minutos antes. Era novo e tinha um laço vermelho com um bilhete pendurado. ‘Bom dia Joana’. Um arrepio escapou e percorreu as suas costas. Não sabia se devia ficar assustada ou se devia gostar do mistério. Estranhamente estava muito inclinada para a segunda opção. Tinha aprendido a ser desconfiada mas neste caso alguma coisa a fazia acreditar que devia sorrir. Pegou no chapéu, fechou a porta de casa e correu para o autocarro.
O dia de trabalho correu normalmente, pontuado por alguns espirros que teimavam em fazê-la relembrar o atribulado regresso a casa no dia anterior.
Os dias foram passando e sempre que olhava para o chapéu-de-chuva que pendurou atrás da porta do quarto, não conseguia evitar um sorriso. Continuava sem saber quem lhe tinha aberto a porta na noite de chuva, quem lhe tinha deixado um presente insólito à porta de casa e, principalmente, como é que essa pessoa sabia o seu nome.
Algum tempo depois, numa chuvosa tarde de sábado, ía sair para fazer compras e pegou no chapéu azul, já sem laço. Carregou no botão do elevador e esperou que descesse do último andar até ao seu quinto. Entretanto, começou a procurar o leitor de mp3 na imensa mala, para lhe fazer companhia no caminho e nem deu pelo elevador chegar ao seu destino. ‘Ainda bem que o chapéu é útil’ disse a voz do fundo da caixa de metal. A Joana assustou-se e deixou cair a mala. Apanhou-a rapidamente, recompôs-se e respirou fundo. Ia finalmente dar um rosto à voz que não lhe saía da cabeça nos últimos tempos. Olhou para cima e do outro lado esperava-a um sorriso.
- Obrigada pelo chapéu, não era preciso incomodar-se. – disse um pouco envergonhada.
- Não foi incómodo nenhum. E não se preocupe, não costumo perseguir os vizinhos. Mas quando me mudei para este prédio, tive a brilhante ideia de pedir algumas informações sobre a zona à D. Maria, do segundo esquerdo e ela pôs-me ao corrente de tudo o que se passa por aqui.
A Joana sentia-se hipnotizada pela voz que não a largou nas últimas semanas.
- Talvez seja melhor recomeçarmos, então. Boa tarde, sou a Joana e moro no 5º direito.
- Olá, o meu nome é Afonso e mudei-me há pouco tempo para o último andar.
- Muito prazer, Afonso.
- Acredite que o prazer é meu.
A Joana sentiu-se a corar, como há demasiado tempo não acontecia. Entretanto o elevador parou e ambos saíram. Olharam para a rua e a chuva ainda não tinha parado. Ela reparou que ele não tinha chapéu-de-chuva e sorriu.
- Posso deixá-lo onde quiser, já que tenho chapéu.
- Agradeço mas não vale a pena. Vou até ao centro.
- Ah, eu também! – disse a Joana apercebendo-se imediatamente de que tinha posto demasiado entusiasmo na frase.
- Posso fazer-lhe companhia, então?
- Claro que sim.
Ele pediu-lhe o chapéu. Ela sorriu, deu-lhe o braço e, debaixo do chapéu-de-chuva azul, conversaram. Não sabem quantas horas, não sabem sobre o quê. A Joana voltou a ouvir a voz que não tinha conseguido esquecer e que agora estava muito mais entranhada em si. Ele não deixou de lhe abrir a porta. Ela continuou a deixá-lo passear debaixo do seu chapéu-de-chuva.

Acabou o Inverno. Passou a primavera. Começou o verão. Ela continua no quinto direito. Ele continua no décimo segundo. Continuam a usar apenas um chapéu-de-chuva mas são muito mais que vizinhos (mas, isso, a D. Maria não sabe).


fevereiro '06

29.5.09

meet joe black


há uns dias revi este filme. gosto da história (as permissas, a aprendizagem, ...) e o sir anthony hopkins está sempre no ponto, mas achei o william bradley sem sal (com a idade é que se está a fazer um homenzinho) e a moça sempre com olhos de carneiro mal morto, com o pestanejar dos desenhos animados. no entanto, agrada-me a ideia de até a morte se apaixonar.

28.5.09

dos sítios


devemos voltar aos locais onde fomos felizes?

27.5.09

desencontros


Tudo começou há 3 anos, numa festa de amigos comuns. O interesse de ambas as partes foi imediato. Passaram a noite a conversar sobre tudo e foram os últimos a sair, sem saberem como. Trocaram contactos e os meses seguintes foram intensos. Jantares, cinema, exposições, fins-de-semana improvisados, surpresas… Apaixonaram-se.
Um ano depois estavam a viver juntos, numa casa que demorou um olhar a ser escolhida. Adaptaram-se um ao outro como se fossem peças consecutivas de um puzzle. Encaixavam na perfeição.
Ambos eram quase exclusivamente dedicados ao trabalho, com horários demasiado preenchidos e agendas muito riscadas.
Passaram a falar menos, já não havia tempo para dar as mãos e os telefonemas durante o dia foram deixando de acontecer, excepto quando queriam avisar que iam chegar mais tarde a casa.
Ela não se apercebeu da situação, apesar das ocasionais chamadas de atenção da parte dele.

No dia em que comemoravam 3 anos, ele marcou um jantar no restaurante preferido de ambos e avisou-a com a devida antecedência.
De manhã ela saiu de casa apressada, apenas com tempo para um rápido beijo na testa e um ‘até logo’ gritado já da porta da rua.
O jantar estava marcado para as 20h. Ele chegou mais cedo ao restaurante para esperar por ela à porta. Às 20h30 ele entrou. Sentou-se, pediu um vinho e colocou um envelope debaixo do guardanapo dela. Passado algum tempo ligou-lhe mas ela não atendeu. Às 22h saiu do restaurante em direcção a casa, mas ainda caminhou durante algum tempo ao longo do rio antes de se dirigir ao carro.
Quando chegou a casa, tomou um duche, comeu os restos do dia anterior e colocou alguma roupa dentro do saco que costumava levar para o ginásio. Depois de dar várias voltas pela casa, como que á espera de algum sinal, de alguma coisa que lhe tivesse escapado e que o pudesse fazer mudar de ideias, pegou no saco e saiu.

Pouco passada da uma hora da manhã quando a porta se abriu. Ela tirou os sapatos para não fazer barulho, pousou a mala, tirou o casaco e dirigiu-se ao quarto. As luzes estavam todas apagadas. Quando os olhos se habituaram á escuridão, viu que ele não estava deitado. Estranhou. A caminho de casa tinha ligado para o restaurante e disseram-lhe que ele já tinha saído há muito tempo.
Acendeu a luz do quarto e viu uma túlipa vermelha junto á sua almofada, com um bilhete:

‘Neste momento não sou capaz de continuar assim. Vou passar uns dias a minha casa. Pensa bem no que realmente queres.’


Ela leu e releu o bilhete. Ligou-lhe para o telemóvel mas estava desligado. Não queria acreditar no que estava a acontecer. Andava demasiado absorvida pelo trabalho e, agora que pensava nisso, apercebia-se dos sinais que ele (por vezes sem grande subtileza mas sempre paciente) lhe tentava transmitir.
Será que o homem com quem partilhou os últimos anos já não a queria na sua vida? Será que havia outra pessoa? Fechou os olhos, abanou a cabeça e afastou essa possibilidade. Ele nunca faria isso.
Mas precisava de respostas. Ambos precisavam.
Ela, que tinha estado meses incontactável, queria agora voltar atrás, queria falar, queria mostrar o quanto ainda amava aquele homem, apesar de estar a perceber o quanto o tinha afastado.
Escorregou para o chão e chorou. Não estava habituada a não controlar as situações mas, acima de tudo, chorou por precisar de um abraço, o único que sempre lá esteve e que agora lhe faltava.
Adormeceu deitada no tapete, ao lado da cama, de cara vermelha e cabelos desalinhados, ainda vestida, mas exausta.

Enquanto isso, no seu antigo apartamento, agora despojado de quase tudo, ele fumava um cigarro à janela, sobre as luzes da cidade adormecida. Ela fazia-lhe falta. O cheiro do seu cabelo, o sorriso pela manhã, os beijos que lhe tiravam o ar e as conversas disparatadas daquela mulher tão segura mas doce.
Ele sabia que ela gostava dele, mas naquele momento isso não era suficiente. Precisava de mais, precisava de saber se fazia parte da vida dela ou se era apenas a pessoa com quem partilhava a casa, já que o tempo a dois era cada vez menor. Ele precisava de saber se ela estava disposta a inclui-lo na sua agenda, com letras grandes e caneta vermelha. E para isso resolveu dar-lhe tempo. Pareceu-lhe a atitude mais correcta. Queria acreditar que sim.
Quando se ia deitar (para descansar o corpo, porque a cabeça estava acelerada, demasiado até), encontrou um papel amarrotado no bolso das calças. Era o cartão que tinha colocado na mesa do restaurante, debaixo do guardanapo dela. Releu-o, não conseguiu evitar o aperto no peito, mas colocou-o no lixo. Naquele momento já não fazia sentido. Deitou-se.

Por agora ele queria esquecer. Ela adormeceu sem saber o que tinha perdido ou, pelo menos, adiado. O bilhete tinha apenas uma frase. Uma pergunta:
‘Queres casar comigo?’.


março '07

25.5.09


no sábado fui a um casamento. não ía desde 2005. e descobri que agora é usual as senhoras convidadas usarem duas fatiotas. uma mais janota para a cerimónia e refeição que se segue, e outra mais prática para o bailarico. desconhecia por completo e vi surgir muitas calças e sabrinas depois do almoço. acho muito bem, deviamos era ir logo assim, práticas e descontraídas. poupavamos os pézinhos e a carteira!

4.5.09

the sound of music


gosto de ouvir música. gosto muito mesmo. é uma óptima companhia e gosto de cantarolar (apesar de o fazer discretamente por respeito aos restantes habitantes do mundo). primeiro a melodia fica presa no ouvido e só depois sintonizo a letra. sempre fui assim. e aprendo canções num instante. mas aqui o meu ouvido não é selectivo. posso não gostar da música mas se for 'orelhuda'... é muito provável que não a esqueça por alguns dias. o que se pode tornar muito irritante. há uns anos fui a um casamento e nos dias seguintes só me lembrava de 'eu gosto de mamar nos peitos da cabritinha' (desse grande ícone que é o quim barreiros).

mas fora estes achaques manhosos, gosto de ouvir desde bryan adams a muse, passando por david fonseca, frank sinatra, bso de musicais, nessum dorma cantada pelo pavarotti arrepia-me como poucas outras coisas... sou muito eclética e tudo depende do que apetece ouvir naquele momento. não me interessa muito se está na moda, se todos gostam ou se ninguém liga.

e com isto levanto uma questão que sempre me intrigou. o que é música comercial? ouvimos todos os críticos (e os pseudos também) a falar em música mais comercial, música mais alternativa... pomos estes rótulos por alguma razão em especial?

música comercial será aquela que agrada mais facilmente a um maior número de pessoas? se sim, não é essa a intenção? ou será que quanto menos gente conhecer / apreciar, melhor é a música, por ser mais selectiva com o seu público-alvo?

às vezes parece que intelectualizamos demais uma coisa que devia ser instintiva, o gosto pelo que se ouve, o efeito que o som tem em nós, na mente e no corpo. se um som nos faz sorrir, se nos deixa bem dispostos, se nos dá vontade de mexer o pézinho ou se nos lembra alturas que aquecem o coração, porquê recalcar tudo só porque temos que adicionar mais um item à lista dos guilty pleasures?

são estas dúvidas existênciais que muitas vezes me assaltam o espírito mas que nem sempre concretizo. estão, portanto, abertas as hostilidades de esclarecimento ;)